"Data de longe essa amizade. Vem dos primeiros dias da nossa Independência, a qual o governo dos Estados Unidos foi o primeiro a reconhecer [...] O tempo não fez senão ir aumentando, na inteligência e no coração de sucessivas gerações brasileiras, a simpatia e a admiração que os Estados Unidos da América inspiraram aos criadores da nossa nacionalidade".
Esse discurso foi proferido em julho de 1906, por José Maria da Silva Paranhos Júnior, o patrono da diplomacia brasileira, mais conhecido como Barão do Rio Branco. O discurso foi dado durante um jantar em homenagem a Eliot Root, então secretário de Estado dos Estados Unidos, em visita ao Brasil.
Cento e um ano depois, o cenário nas relações bilaterais entre os Estados Unidos e o Brasil parece ter mudado radical e rapidamente. Especialmente nos últimos dias. Na quarta-feira (9/7), após uma série de ameaças, o presidente norte-americano, Donald Trump, anunciou que aplicaria tarifas de 50% sobre qualquer produto brasileiro exportado aos Estados Unidos.
Mais que isso, ele condicionou as tarifas, em parte, ao processo judicial no qual o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é réu, num caso em que ele é acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Ele nega seu envolvimento no caso.
Imediatamente, porém, soaram os sinais de alerta do Palácio do Planalto. Integrantes do governo interpretaram o episódio como um ataque frontal à soberania do país e, em alguma medida, como uma tentativa de interferência no processo eleitoral de 2026.
Isso porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se apresenta como candidato à reeleição e Trump defendeu, em postagens em redes sociais, que Bolsonaro deve ser submetido ao "julgamento" do povo.
Em uma nota divulgada por Lula na quarta-feira, o presidente disse que o país não aceitaria qualquer tipo de tutela.
"O Brasil é um país soberano com instituições independentes que não aceitará ser tutelado por ninguém".
Em entrevista concedida ao Jornal Nacional, da TV Globo, na quinta-feira, Lula voltou a criticar a postura de Trump.
"É inaceitável que o presidente Trump mande uma carta pelo site dele e comece dizendo que é preciso acabar com a caça às bruxas. Isso é inadmissível", disse.
Na sexta-feira (11/7), Trump falou publicamente sobre o caso e disse que, no momento, não pretende conversar com Lula.
"Talvez, em algum momento, eu falarei com ele. Agora, não. Eles estão tratando o presidente Bolsonaro muito injustamente. Ele é um bom homem, sabe? [...] Ele também é muito honesto e eu conheço os honestos e os desonestos", disse o norte-americano.
Em meio a essa troca pública de críticas e diante da possibilidade de um tarifaço sem precedentes na história brasileira, a BBC News Brasil procurou especialistas em relações internacionais com uma pergunta: este é o pior momento das relações entre Brasil e Estados Unidos?
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, a resposta é inequívoca.
"Criou-se, realmente, uma agressão injustificada do ponto de vista político e econômico. Eu não conheço nenhum outro episódio tão grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois séculos de existência dessas relações", diz à BBC News Brasil o ex-ministro da Fazenda e ex-embaixador do Brasil em Washington, Rubens Ricupero.
"Sem dúvida nenhuma, posso dizer que esse é o pior momento", diz à BBC News Brasil o ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2016 e 2018 e consultor internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Hussein Kalout.
Na avaliação deles, a atual crise supera outros momentos de turbulência como a revelação de que os Estados Unidos espionaram a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e até mesmo o apoio dado pelos norte-americanos ao golpe de 1964.
Ainda de acordo com os especialistas, o Brasil se encontra em uma situação delicada porque, ao vincular as tarifas ao julgamento de Jair Bolsonaro, o governo Trump não teria deixado margem de negociação para o governo brasileiro.
Na avaliação deles, a atual crise pode deixar cicatrizes longevas no relacionamento entre os dois países e vai demandar enormes esforços diplomáticos da parte brasileira para tentar minimizar o impacto das tarifas prometidas.
'Intimidação e coerção'
Brasil e Estados Unidos são, ao mesmo tempo, as duas maiores economias e democracias do hemisfério americano. O relacionamento bilateral dos dois países completou 200 anos em 2024 e foi celebrado por Lula e pelo então presidente Joe Biden.
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, Guilherme Casarões, diz à BBC News Brasil que a proximidade entre os dois países ficou maior a partir da proclamação da República no Brasil, em 1889.
"Até então, o Brasil voltava suas atenções para Londres, capital do então império britânico. Com a proclamação da República, o eixo de atenção brasileiro se volta para Washington", disse o professor.
Casarões explica que o Brasil se inspirou em uma série de instituições norte-americanas durante os primeiros anos da República e que, desde então, essa relação foi se aprofundando tanto política quanto comercialmente.
"Havia ali um interesse de tornar o Brasil quase uma imagem espelhada dos Estados Unidos ao sul do Equador. Essa era uma discussão efetiva na formação do nosso período republicano, e os Estados Unidos assumiram muito rapidamente o lugar de primeira potência como primeiro parceiro comercial do Brasil", conta Casarões.
Os Estados Unidos foram, até 2009, o principal parceiro comercial do Brasil, quando o país perdeu o lugar para a China. Atualmente, o país é o segundo principal destino das exportações brasileiras. No ano passado, os dois países comercializaram US$ 80 bilhões em produtos.
Ao longo de dois séculos, dizem os especialistas, houve momentos de tensão nesse relacionamento, mas nada mais grave do que a atual crise.
"Eu não conheço nenhum outro episódio tão grave nas relações entre o Brasil e Estados Unidos em dois séculos de história e desde do início desse relacionamento", diz o ex-embaixador Rubens Ricupero.
O ex-embaixador é autor de livros sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos. Neles, Ricupero descreve o vínculo entre os dois países como uma história marcada por momentos de aproximação e distanciamento. Nenhum, na sua avaliação, como o que existe agora.
"O que aconteceu foi uma tentativa aberta de interferência num assunto da soberania brasileira, tomando partido num problema político, inclusive atacando instituições brasileiras como o Supremo Tribunal Federal", diz o embaixador.
Na avaliação dele, até então, o pior momento das relações entre os dois países havia sido o apoio dado pelos Estados Unidos ao golpe militar de 1964, que levou o Brasil a uma ditadura que durou 21 anos.
Hussein Kalout faz uma avaliação semelhante sobre o atual momento do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos.
"Antes disso (anúncio de Trump), a relação estava fria em função de serem dois governos que têm perspectivas muito diferentes sobre diversos assuntos e sobre o mundo", afirma Kalout.
Agora, no entanto, esse esfriamento se transformou em outra coisa.
"Agora, a relação está em seu ponto mais baixo. E isso acontece em função da conduta um pouco intimidatória e coercitiva que o presidente Trump tem adotado em relação ao Brasil", diz Kalout.
Guilherme Casarões segue uma linha semelhante.
"Pensando na relação bilateral, este é o pior momento. O que houve foi uma agressão frontal, aberta e gratuita ao Brasil, com demonstrado interesse de violação da soberania nacional", afirma o professor.
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FONTE/CRÉDITOS: Agencia da Noticia
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